ARTIGO - Jabutis na MP Nº 905
Em artigo publicado nesta quinta-feira (09/04) pelo jornal Valor Econômico, o procurador-geral do Trabalho, Alberto Balazeiro, e o secretário de Relações Internacionais no MPT, Márcio Amazonas defendem que a MP do contrato verde amarelo afronta a Constituição e convenções internacionais ratificadas pelo Brasil.
ARTIGO - Jabutis na MP Nº 905
O Congresso Nacional decidirá, nos próximos dias, o destino da Medida Provisória 905, que institui o contrato de trabalho verde e amarelo e dá outras providências.
A medida foi a recordista de propostas de alteração em toda a história (1.930 emendas apresentadas), e não à toa: além da criação da carteira de trabalho verde e amarela, a MP altera mais de uma centena de dispositivos da CLT e trata, entre outros temas, sobre microcrédito, normas de direito material e processual, restringe poderes do Ministério Público do Trabalho (MPT) e ainda cria um novo fundo federal, o Programa de Habilitação e Reabilitação Profissional.
Tal Programa foi criado pelo Governo Federal para financiar a habilitação e reabilitação de trabalhadores, uma ideia louvável, não fosse pelo seu financiamento por meio do dinheiro das indenizações por dano moral coletivo em ações civis públicas e termos de ajuste de conduta firmados com o Ministério Público do Trabalho, verba que, por força da Lei de Ação Civil Pública, deveria ser revertida para a população lesada nos casos de danos coletivos.
E, apesar de ser chamado de "programa", trata-se, na verdade, de mais um fundo criado em um momento que tramita, no Senado, a "PEC dos Fundos", proposta que pretende extinguir mais de 200 fundos públicos inefetivos. Um verdadeiro contrassenso.
Além disso, o Programa/Fundo de Habilitação e Reabilitação não possui conta própria, e tem sua receita direcionada para a Conta Única do Tesouro Nacional, repetindo a fórmula desastrosa de outros fundos que não deram certo e que tiveram as suas verbas contingenciadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A partir da MP 905, a indenização que deveria voltar para a população lesada será destinada ao orçamento da União.
A título de exemplo, o art. 21 da MP 905 determina que a indenização depositada pela Vale no acordo judicial do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), vá para os cofres da União em vez de ser destinada a quem mais sofreu com a tragédia: a população local. A sociedade e, principalmente, os estados e municípios afetados, são os grandes prejudicados por essa medida.
Não bastasse isso, a MP 905 ainda diminui prerrogativas do Ministério Público, impondo prazo aos termos de ajuste de conduta (TACs) firmados pelo MPT e impossibilitando a sua firmatura quando já houver termo extrajudicial firmado pelo Poder Executivo.
Importante abrir parêntesis para explicar que o TAC é um instrumento consensual de regularização proposto pelo Ministério Público. É através da sua assinatura - facultativa - que a pessoa física ou jurídica que se encontra irregular se compromete a cumprir a legislação e, em contrapartida, deixa de ser processada.
Tendo em vista a natureza do TAC, a delimitação de prazo imposta pela MP 905 significa que o infrator somente deverá honrar o seu compromisso de se manter regular por dois anos. Em outras palavras: "você está obrigado a cumprir a legislação por dois anos, e depois, se voltar a ficar irregular, voltaremos a conversar". Um verdadeiro convite ao descumprimento da lei.
Não é demais dizer que a abertura desse flanco para a ineficiência dos TACs poderá ocasionar a fiscalização constante das atividades empresariais, gerando acúmulo de procedimentos e mesmo de aplicação de penalidades, prejudicando o próprio empresário, que terá a sua empresa fiscalizada, necessariamente, de dois em dois anos. Ou, ainda, ocasionará o aumento no ajuizamento de ações civis públicas, implicando no assoberbamento do Poder Judiciário Trabalhista, algo que não é desejado por quem deve buscar sempre a pacificação dos conflitos.
Ainda, a MP 905 confunde o instituto do TAC firmado pelo Ministério Público do Trabalho (instrumento consensual previsto na lei de ação civil pública, com viés nitidamente processual) com o termo de compromisso administrativo firmado pelo Auditor-Fiscal no exercício de seu poder de polícia, determinando a impossibilidade de convivência simultânea entre esses dois institutos. É dizer que aquele estabelecimento que foi autuado, ou firmou um compromisso com o fiscal, não poderá ser processado pelo Ministério Público. Para facilitar a compreensão, fazendo um paralelo dessa novidade trazida pela MP 905 para os delitos de trânsito, é como se um motorista embriagado, em alta velocidade, ultrapassasse um sinal vermelho, atropelasse um pedestre na calçada e se livrasse da punição nas esferas cível e criminal porque já pagou a multa de trânsito no DETRAN. É mais ou menos isso que irá acontecer, só que no mundo do trabalho.
É preciso frisar, contudo, que os problemas da MP 905 vão além das suas consequências negativas para o Ministério Público e para a sociedade. A medida também afronta a Constituição e convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, causando uma ruptura no ordenamento jurídico interno e a possibilidade de sanções jurídicas na ordem internacional.
Não foi outro o entendimento da Justiça do Trabalho da 14ª Região, em Rondônia e Acre, primeira a reconhecer, em 6 de fevereiro passado, a inconstitucionalidade do Programa de Habilitação e Reabilitação, bem como a ausência de consulta tripartite, em desrespeito ao que determina a Convenção 144 da OIT - Organização Internacional do Trabalho. A decisão reconheceu a ausência do requisito constitucional de relevância e urgência do art. 62 da Constituição, e também a inconstitucionalidade da alteração do art. 627-A da CLT pelo art. 28 da MP 905, uma vez que se trata de norma de direito processual, além de versar irregularmente sobre normas relativas ao Ministério Público. Ou seja, a decisão identificou três inconstitucionalidades na MP 905, nos pontos em que restringem as prerrogativas do Ministério Público do Trabalho.
Nessa mesma linha, e tendo como foco o controle concentrado de constitucionalidade no STF, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, reconhecendo a inconstitucionalidade da MP 905, ajuizou ADIN - Ação Direta de Inconstitucionalidade contra os mesmos artigos 21 e 28 da medida, tendo a ação sido distribuída para o Ministro Edson Fachin.
Diante de tantos perigos - e controvérsias - causados pela MP 905, espera-se o prestígio à ordem, à constituição e às nossas leis, afastando estas irregularidades e impedindo a interferência do Governo na autonomia do Ministério Público. Estamos diante de um precedente paradigmático e histórico, em que se avalia muito mais que a adequação de normas trabalhistas: o que se está em exame é a possibilidade de restringir os poderes do Ministério Público a qualquer tempo, via Medida Provisória. É isso que está em jogo. No plano legislativo, caberá ao Congresso Nacional dar a palavra final sobre a matéria.
Alberto Balazeiro é procurador-geral do Trabalho
Márcio Amazonas é Secretário de Relações Institucionais do Ministério Público do Trabalho